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domingo, 25 de maio de 2008

Delicadeza


O tempo mudava devagar...
Embaciado, o céu estava cheio de nuvens desnorteadas, eram retalhos em movimento, testando combinações.
O sol se fazia menos presente. Verdade que não sumia de uma vez, por delicadeza, ia embora aos poucos, cada dia aparecia menos, até chegar a hora em que o calor não aquenta mais, igual abraço de amor que já foi.

João Gilberto e Tom Jobim, chega de saudade: os acordes limpos do piano; a precisão do violão; a suavidade da voz; a simplicidade poética da letra, a batida...
Ela, tão bem acompanhada, sorria para o tempo se achando uma moça cheia de bossa.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Movendo folhas e pensamentos

Estava sentada numa cadeira giratória, daquelas que dão olhos à nuca e mãos às costas. De frente para a janela, via o outono, com seu amarelo-frio, meio tango, meio blues.
O vento não dava trégua, seguia, tirando tudo do repouso...
Levantava a poeira fina da rua, fazendo os passantes apertarem os olhos e praguejarem baixo (pelo menos era o que parecia diante das caras que faziam e da forma com que gesticulavam)...
Tecia uma coreografia estranha e bela, com as folhas secas caídas no chão e com os papéis que deixavam ali, displicentes. Às vezes usava um grupo; noutras, um solista. Eram rodopios e vôos sem ter fim...
Tinha hora que errava de folha e ia atrapalhar a leitura do rapaz de blusa xadrez e calça de veludo, que insistia em ler no banco da praça...
Como se não bastasse, ainda embaraçava os pensamentos dela, do mesmo jeito que fazia com os cabelos longos, da menina que brincava no balanço.
Mas depois de tanto pé-de-vento e redemoinho, ela adquiriu uma certa prática, aprendeu que nessas horas de agito interno, o melhor a fazer é deixar estar...
Assim, de olhos fechados, se permitiu ficar uns instantes aproveitando o calor do sol - que quase não estava ali.
É desse jeito que, às vezes, ela sente o seu.

Foto:http://catpuff-noir.deviantart.com/art/Blow-and-Wish-77486338

sábado, 10 de maio de 2008

Forma e volume


A tarefa era levar para escola uma vasilha, qualquer uma, não importava a cor, o tamanho ou o formato - garrafa, balde, tonel, vaso.
Que coisa diferente para uma tarefa, pensou ela intrigada.
No dia seguinte, vestiu o uniforme, toda pensativa. Os babadinhos eram irritantes, mas ela adorava a jardineira, era de saia e xadrez de cor de rosa. Depois do café da manhã, pegou a garrafa azul de vidro grosso, que a mãe tinha colocado embrulhada numa sacola e foi para escola.
A atividade consistia em perceber características dos estados da matéria - forma e volume.

Ela, na maioria das vezes, se adéqua bem. Cidades grandes e pequenas; trabalhos e grupos diferentes; comidas e horários. Se fosse um estado da matéria, seria líquido: essa flexibilidade, talvez demonstre a ausência de forma própria; mas o volume, esse é definido.
Como um rio, ela corre, seguindo o leito já traçado, mas de tempos em tempos, o caminho se estreita e ela sente a opressão das margens. Novas idéias, pensamentos andarilhos e desejo de mudança surgem como afluentes e ela, em tempestade, é toda inundação. Precisa de espaço para desdobrar a alma e deixa-la ao sol; para inflar os sonhos, permitindo que eles ganhem altura; e ela, a imensidão.
PS: Babadinhos continuam irritantes.

domingo, 4 de maio de 2008

Encontro


A água corria junto ao meio-fio, ia fraca porque o declive era leve. Enquanto isso, ela fazia o caminho contrário, subia a larga avenida, pedalando devagar, aproveitando o vento morno e a falta de movimento.
Ao longe avistava uma senhora: vinha pequena com passos de paciência; tinha o cabelo cinza preso, possivelmente, num coque; trajava um vestido cor do tempo repleto de florzinhas esmaecidas e trazia numa das mãos um embrulho.
Na medida em que se aproximava, reparava melhor. Embora lento, o andar da senhora era firme; ela não vacilava; estava claro que o tempo não lhe tinha levado o vigor. O saco pardo era da padaria que ficava ali perto. Certamente a senhora estava levando o pão para o café da manhã.
Alguns metros a frente, uma menina de vestido colorido e sandálias brancas corria, equilibrando-se na guia do passeio. Afastada, a mãe atordoada e carregada de sacolas de compras, gritava, em vão, pedindo para que ela esperasse. A equilibrista, por sua vez, olhava para trás de tempos em tempos e continuava na mesma toada.
Chegando na esquina, ela passou pela senhora e pela menina; os olhos das três se cruzaram - iguais em brilho, vivacidade, esperança - e elas trocaram sorrisos. Naquele momento foi como se o tempo se dividisse e permitisse que o passado, o presente e o futuro se encontrassem no breve espaço de um bom dia...