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domingo, 31 de agosto de 2008

O dia tinha sido comum - os horários, o trabalho, as pessoas, os lugares - mas ela estava diferente.
Uma sensação de falta, um incômodo que insistia em segui-la até em casa. Pelas calçadas de sempre, aumentava e diminuía o passo, mas foi vã sua tentativa de despistar a inquietude.

Chegou, desabotoou a saia e abriu a janela como se buscasse uma liberdade figurada, deixou que o vento brincasse com os seus cabelos por alguns instantes, enquanto tentava esquecer... mas não conseguiu.
Impaciente foi ao banheiro, com as mãos em concha e em movimentos repetidos jogou água gelada no rosto. Pouco tempo depois a água lhe escorria pelo pescoço, molhando a camisa já amarrotada e arrepiando a pele. Abrindo os olhos, viu seu reflexo no espelho... pode ouvir a voz de Cecília - "eu não tinha esse rosto de hoje. Assim calmo, assim triste...".
Cansada de lutar contra a perturbação que já havia se instalado em seu espírito, deixou-se cair, exaurida, no sofá da sala.
Ali, entregue, largou as armas, tirou as máscaras, despiu-se do figurino e descalçou os sapatos de concreto.
Para sua surpresa, na medida em que se afastava do modelo que lhe era imposto, com mais clareza via a si mesma. Longe dos excessos, da certeza fixa e da verdade pronta, pôs-se atenta e por fim, pode escutar a sua alma.


Quando deu por si, a noite já ia alta. O silêncio era regra, excetuado apenas por um rádio, que numa batida gostosa repetia, lá longe, "a vida é curta para ser pequena."
Pensando que amanhã seria o primeiro dia, olhava o mundo pela janela do apartamento: tudo era diverso... Seus olhos eram os mesmos, mas o foco era outro.
Cansada e feliz, vestiu o pijama e foi dormir.


Foto: http://detail24.deviantart.com/art/life-83390630

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Deixou o corpo desenrolar devagar, bem na velocidade de domingo. Ainda na cama, ouviu a chaleira que apitava na cozinha, lembrando à boca o gosto do café.
Tomou um banho morno e demorado, desses que deixam as pontas dos dedos enrugadas, os ombros soltos, a alma lavada e perfumada.


O céu de inverno estava diferente... Um sol morno num azul aberto... Parecia convidar para uma volta.
Como ela nunca foi de dar toco no céu, não se fez de rogada e saiu distraída como aquele eu te amo, que sem ensaio, escorrega no peito, tropeça na língua e cai da boca.





Foto: http://ultraviolett.deviantart.com/art/monday-morning-49137001

domingo, 17 de agosto de 2008



I


Bibliotecária e muito tímida: o trabalho era uma boa desculpa para falar sussurrando - "devia ser o costume", comentavam os vizinhos. Seus cabelos castanhos sempre iam presos num rabo-de-cavalo; todos os dias usava saias de pregas e camisetes bem assentados; eram marrom, bege, pérola, gelo e todas as gradações dos tons invisíveis. Acordava às sete horas e um minuto - não gostava de horas redondas. Quando saía de casa levava músicas no ouvido - tinha decidido aprender inglês por meio delas - um livro nas mãos, a bolsa e o guarda-chuva.


II


Atrapalhado: não era muito bom em pensar e prestar atenção ao que acontecia do lado de fora, assim, vivia esbarrando e tropeçando - "nas idéias", como dizia a sua avó, "nas idéias". Os cabelos escuros eram penteados de lado; os óculos, obrigatórios desde cedo, tinham aros pretos; usava calças xadrez, camisas claras e sapatos sempre bem engraxados. Trabalhava como técnico de manutenção, numa grande fábrica de máquinas fotocopiadoras. Queria aprender a falar com doçura e cadência, por isso ouvia bossa nova.



I + II


Então um dia aconteceu, numa esquina comum aos dois; um atraso, anormal para ela; um esbarrão, trivial para ele.
Coisas no chão, num arremedo de desculpas, palavras ditas ao mesmo tempo.
- Eu nunca... - sussurrou ela.
- Eu sempre... - arranhou ele.
Sorrisos encabulados e o brilho de um talvez...



Foto:http://anemotionalfailure.deviantart.com/art/Vintage-idea-36471687

segunda-feira, 11 de agosto de 2008


A janela aberta vira moldura para a cortina que dança serelepe, conduzida-seduzida pelo vento.
Os papéis e fotografias, espalhados pelo chão, mudam de lugar numa tentativa de combinação: sorrisos distantes, frases alegres, carta de adeus, por do sol na praia...
Imagens, palavras e o vento.


É assim que está tudo quando ela chega em casa.
Da porta, aprecia o cenário, por alguns instantes chega a ensaiar uma reclamação mental pela janela esquecida aberta, mas muda de idéia.
Entra, coloca uma música, tira os sapatos e atira a bolsa no sofá. Pega uma taça de vinho e senta no chão. Muita lembrança embaralhada no piso frio.


Poucos minutos e começa a chover.
Ela corre e fecha a janela, encerrando, sem saber, os galanteios do vento e deixando uma cortina triste a escorrer pela vidraça.
Um trovão e ela sorri lembrando do que ouviu, "não fica assustada, sou eu gritando que te adoro".
Papéis e fotografias vão parar na gaveta...
Ela teve o passado - por vezes, foi ele quem teve a moça - mas isso foi antes, quando ela tinha medo de trovões.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008



No céu, poucas nuvens passavam apressadas. Um vento de assovio fazia a árvore balançar. Ao longe uma música baixa, gostosa de ouvir, talvez the heart of saturday night - certo que com algumas horas de atraso, afinal era manhã de domingo.


Mais um agosto e de novo aquelas várias alusões ao desgosto. Sempre estranhou essa idéia de conferir poderes aos dias, objetos e números - como se deles emanasse uma espécie de força a conduzir o destino: azares e sortes.
Dizem que o mês em curso é muito pouco propício aos relacionamentos amorosos. Essa pecha nasceu em Portugal, na época das grandes navegações... agosto era quando as embarcações zarpavam dos portos, então as mulheres que se casavam nesse mês não tinham lua-de-mel.


Ela é de agora, suas descobertas prescindem de grandes navegações e suas expansões ultramarinas não carecem de portos. Assim, recebe o mês com o coração tranquilo - é certo que a saudade anda espiando atrás da porta - mas ela mantém um sorriso leste a oeste, e segue pensando em abraços, cobertas e Djavan à capela.


http://lilfloweronthefield.deviantart.com/art/my-name-is-hope-56620620