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terça-feira, 23 de setembro de 2008

Uma tarde em pleno meio de semana, um sol estalado e pregado no céu, o ar parado, quase sólido, um abafado barulho de motores e buzinas bem ao longe.

Ela cheia de trabalho e de uma falta de vontade de cumprir obrigação... Na verdade estava no seu mais perfeito modelo de complicação: com vários itens de série, todos os adicionais disponíveis para o seu ano de fabricação e mais aqueles adquiridos ao longo do tempo.

Nesse estado de ânimo, largou as canetas, fechou o editor de textos e foi pro jardim: andar descalça, sentindo a grama quente sob os pés - gentebichosemidomesticado não pode viver em apartamento, simplesmente não cabe.

Então, para acalmar a mente resolveu fazer barulho: com pregos, martelo, suor, tábuas e uma completa falta de jeito, entendeu por bem arrumar o fundo solto da floreira. Dedo amassado, jeans rasgado e já dava para plantar: pedras, terra, água e adubo; medos expostos à luz; idéias e escolhas revisitadas.

No fim da tarde, leve e suja, ela via da janela aberta a chuva que caía pesada e poética sobre as suas cinco gérberas coloridas. Com o cheiro de terra molhada vinha a certeza de que às vezes ela precisava se ver pelo avesso para entender direito o a trazia de volta, impelindo-a a continuar.


Foto: http://lovelywordthief.deviantart.com/art/Spring-96463391

domingo, 14 de setembro de 2008

Engraçada a dualidade.
Uma melancolia a invade sempre que o dia de domingo vira noite, assim, quando começa a escurecer com passarinho cantando, dá nela uma espécie de banzo, mas sem ser... não é ruim, só um sinal que ela está ficando de tardinha. Por outro lado, manhã de domingo é quase uma festa, se tiver sol então, ela coloca música e vira flor... descalça na grama a vida fica mais simples.
Hoje foi assim, manhã no jardim com vestido de algodão, sol, azul, passarinho e brisa.


Era nesse cenário que ela queria que você entendesse que o amor só sabe ser inteiro e grande, pode até chegar em pequenas porções: num olhar que se reconhece, num conjunto de gestos que aproxima, num tom de voz que acalenta, num cheiro que chama... mas nem se engane, amor vem com autoplay, sozinho se monta e de peças vira todo.
Garantias, prazo, manual... não tem não; mas durável ou não, ele é quase eterno, que nem luz de estrela que continua caminhando depois que ela já foi. Um estado assim novo - de sítio e de graça - assusta que arrepia, mas num sopro, dá alma.


Se você estivesse ali, se fosse parte daquela manhã, veria no sorriso dela o encantamento que provoca.





quinta-feira, 11 de setembro de 2008

E aconteceu que um dia ela acordou com os olhos embaçados. Eles não doíam ou ardiam, não estavam vermelhos ou inchados, mas tudo que via era semelhante a uma fotografia mal focada.
Piscou várias vezes... Faltou ao trabalho. Usou colírio... Fechou as cortinas. Por fim, marcou uma consulta.

Dirigir? Andar? Escolheu um táxi - bem ela que fazia tempo não confiava nos olhos dos outros. Enquanto o carro seguia, colocou os cabelos atrás da orelha e arrumou os óculos escuros, que eram grandes como o medo.

Exames físico e complementares... inconclusivos.
Nada errado, foi o que o médico disse, entregando a receita - um colírio e um calmante.

Ela conhecia um outro tipo de falta de visão: Já ficou cega de raiva, tropeçando em sonhos desperdiçados e arremessando palavraspedra; cega de paixão, tateando paredes de castelos feitos de nuvens e vento; já fechou os olhos com força para não enxergar o que não queria, numa espécie de cegueira voluntária; e já foi incapaz de ver o que estava bem na sua frente, num tipo de ingenuidade instrumental. Mas em todos esses casos ela via com os olhos, era a razão que estava obliterada. Agora não, o mundo parecia nublado.

Desanimada pegou outro táxi, queria ir para casa...
O motorista - um senhor que parecia muito idoso para dirigir - puxou conversa. Taí uma coisa que ela não tinha a menor vontade de fazer naquele momento, conversar. Então se limitou a ouvir, soltando de vez em quando um aham, um sei, ou um imagino.
Quando estacionou o carro na porta da casa dela o senhor perguntou:
- Vista ruim?
Ao que ela respondeu com outro aham.
- Coração úmido embolora as vistas - foi o que ele disse enquanto dava partida no carro.

E de repente ela tinha pressa.
Subiu as escadas, trombando com sombras. Destrancou a porta de casa e correu para o quarto. Abriu gavetas e armários - devia estar ali, em algum lugar - o tempo passava e tudo era desordem: roupas na cama, livros no chão, cabelos soltos no rosto... Ela estava cansada e apreensiva, mas agora só faltava uma cômoda antiga.
Abriu devagar, gaveta por gaveta, sem sucesso... Em desalento, mas ainda segura por um fio de esperança, abriu a última e foi lá que encontrou, guardado bem no fundo, junto com outras coisas antigas e usadas, o coração, que um dia tinha tirado do peito.
Com cuidado, colocou-o de volta no lugar - certas coisas não devem ficar em gavetas.




http://bellemagie.deviantart.com/art/Paper-Heart-59217882